Magic: The Gathering é um jogo de cartas que existe desde 1993. Esses 32 anos foram construídos em torno de uma lore progressiva, com muitas pontas soltas, mas também com arcos longos que conectam narrativas de eventos ocorridos em outros tempos, com personagens recorrentes e um notório receio de dar um ponto final para esses mesmos arcos.
Da Guerra dos Irmãos para a Invasão Phyrexiana, que se conecta com o período dos Thran quando Yawgmoth, Thran Physician conheceu um plano desabitado que se tornaria Phyrexia, até o famoso sacrifício de Urza para destruir o vilão de uma vez por todas, passando por Karn, Silver Golem que posteriormente levou o Mirari para o plano artificial de Mirrodin, mas carregava consigo o óleo phyrexiano que, quase uma década depois, levaria ao renascimento de Phyrexia com os Pretores.

Quase uma década após a libertação de Karn, veríamos o retorno dos Phyrexianos em Kaldheim, que começaria a ligar as pontas para o que se tornaria, em 2023, a segunda invasão Phyrexiana utilizando a Realmbreaker, culminando na derrota de Elesh Norn, Mother of Machines e no “exílio” dos Phyrexianos em um phase out feito por Teferi, Time Raveler e Wrenn and Realmbreaker.

Deste evento, surgiram os Omenpaths além de, por alguma causa ainda misteriosa, muitos Planeswalkers perderem sua centelha. Acompanhamos, durante um ano, Kellan, the Fae-Blooded viajar entre esses portais em busca do seu pai, Oko, Thief of Crowns. Quando finalmente o encontra, Kellan, Oko e o seu grupo de foras-de-lei são surpreendidos pelo surgimento de Jace Reawakened, que leva consigo Loot, the Key to Everything e inicia seu plano de reconstruir o multiverso.

Para compreender os eventos que levaram Jace àquele momento, se faz necessário voltar para Ixalan e compreender como o relacionamento dele com Vraska, Relic Seeker começou quando ele perdeu suas memórias por conta do primeiro embate da Gatewatch contra Nicol Bolas, God-Pharaoh.
A Gatewatch foi originalmente formada em Zendikar para derrotar os Eldrazi, aquela raça antiga e misteriosa que habita as Eternidades Cegas e que Tezzeret, Cruel Captain descobriu na última expansão que eles estiveram em confronto com os Fomori, uma raça de conquistadores interplanares que podem ter passado por Ixalan em algum momento e desapareceram do Multiverso.

Tudo o que mencionei refere-se resumidamente aos principais story beats do card game. A lore de Magic é extensa, rica em material de referência e de narrativas com personagens engajadores que despertam o imaginário da alta fantasia nos jogadores e fãs. Quem sabe quantas campanhas de RPG não foram, de alguma forma, influenciadas ou inspiradas nos contos de Magic? Quantas vezes um personagem criado em Baldur’s Gate 3 não foi baseado no conceito de um Planeswalker ou até na semelhança física com uma personagem como a Chandra Nalaar ou Liliana Vess? De que forma outras obras podem ter observado o desenvolvimento da história do jogo e tomaram notas que foram posteriormente aplicadas em seus próprios jogos, livros, séries ou filmes?
Mas, se a história de Magic é tão fascinante, por que tantas pessoas se importam tão pouco com ela? E não apenas na base de jogadores: qual foi a última vez que tivemos qualquer menção sobre a direção que a lore do card game está tomando por parte de qualquer designer? Em que momento os questionamentos e demandas da comunidade se referem à qualidade da trama geral e não apenas aos temas abordados nos “hat sets”? Para algo tão crucial para as expansões in-universe, a lore de Magic parece abandonada no debate público.
A Importância da Lore de Magic em um mundo de Universes Beyond
Universes Beyond veio para ficar. A perspectiva de que a Wizards of the Coast vai voltar e focar no universo de Magic: The Gathering integralmente no curto prazo é uma ilusão; afinal, existe um propósito para o jogo precisar de parcerias com outras marcas e franquias hoje além delas venderem melhor do que qualquer outra expansão — colocar Magic dentro do espaço de imaginário coletivo.
Apesar das muitas afirmações que comparam essa iniciativa com Fortnite, o que Magic propõe está bem mais próximo do que a Hasbro já faz com Monopoly, ou principalmente com os produtos da Lego: um conjunto de sistemas e regras (no caso do Lego, este refere-se aos bloquinhos de montar, a dimensão deles e o objetivo “final” de juntar todos da maneira apropriada para construir algo) que se encaixa com qualquer roupagem ou camada. Homem-Aranha? Claro! Britney Spears? Monopoly já teve seu produto com a cantora! Horizon Zero Dawn? Lego já teve até seu próprio jogo de consoles! E não vamos esquecer: Magic já realizou parcerias para um produto com o cantor Post-Malone, o quão diferente isso é de um K-Pop Demon Hunters?
O tratamento pode parecer igual, mas Magic é um jogo inerentemente distinto de Monopoly e um produto bem mais volúvel do que Lego por um detalhe: card games têm uma linha de progressão constante, e tudo o que entra no jogo fica nele para sempre. O Monopoly da Britney Spears ou o Lego da Estrela da Morte de Star Wars que custa US$999.99 existem como produtos isolados com um público-alvo muito bem designado e onde quem comprou o usará para aquele fim e dificilmente tentará misturar outras peças de outros produtos dessas respectivas marcas nele — e as empresas que as vendem se dão por satisfeitas em vender aquele produto isolado.

Magic não apenas tem a mescla de peças de jogo como hábito, como motiva esse comportamento: considere, por exemplo, a controvérsia recente com o card Vivi Ornitier, vindo da parceria de MTG com a série antológica de RPG Final Fantasy. Enquanto Vivi pode funcionar com vários outros cards da coleção de Final Fantasy, seus resultados competitivos em torneios de Magic se dão principalmente em um deck onde ele é a única carta da expansão na lista além do terreno Starting Town. As demais peças, inclusive Agatha’s Soul Cauldron que torna Vivi tão poderoso nesse arquétipo, são provenientes de cards vindos de outras edições que funcionam bem como um conjunto completo.
A máxima também se aplicou em The One Ring, que, diferentemente de Vivi, funcionava em tantos decks do Modern que chegou a ser o card mais jogado do formato por uma margem significativa, e dificilmente ao lado de outro card da expansão de Lord of the Rings. Eles estavam sendo misturados com Ragavan, Nimble Pilferer, com Emrakul, the Promised End, algumas vezes com Yawgmoth, Thran Physician, com Necrodominance e Sheoldred, the Apocalypse, Narset, Parter of Veils e Jace, the Mind Sculptor, entre outros.
Mas quem exatamente são esses personagens? Por qual motivo o fã de Final Fantasy ou Lord of the Rings deveria se importar com Agatha of the Vile Cauldron ou com quem é Emrakul, Ragavan, ou Yawgmoth no universo de Magic? E vamos supor que ele se importe, como exatamente podemos apresentar estes personagens e suas histórias para eles de uma maneira engajadora e fascinante que não envolva ler uma wiki ou precisar correr atrás de uma quantia indefinida de cards e/ou de alguns livros antigos em busca da lore e história geral de Magic para contextualizar?
Universes Beyond é, de longe, o maior sucesso comercial da história do jogo. Nunca se consumiu, falou sobre e se compareceu tanto a eventos de Magic ao redor do mundo como hoje, e as parcerias funcionam exemplarmente para colocar o nome “Magic” dentro do imaginário popular como um jogo, mas ele não fica ali por muito tempo porque basta o próximo Final Fantasy ser anunciado ou a mais nova parceria de Spider-Man ou filme sair que esse público retorna para suas áreas de interesse, sem incluir o card game entre eles.
Para esse público ficar no Magic, é necessário que o jogo crie uma narrativa engajadora em seu próprio universo. Títulos como Final Fantasy e Spider-Man são aclamados pelo público pela qualidade de suas histórias através das décadas, com certa facilidade de acesso ou fidelização das suas audiências em relação ao produto pelo tempo de consumo deles no longo prazo (a média do público consumidor ativo de Final Fantasy está na faixa dos 30-50 anos), e Magic pode reproduzir esse efeito e fidelizar audiências novas e antigas… se fizer do jeito certo.
Há de convir que um jogo de cartas com uma história escrita três vezes por ano durante algumas semanas não é a melhor fonte de narrativa na década da informação rápida, principalmente quando parece que o investimento em divulgação e até execução coerente dessa narrativa é escasso. Se faz necessário ir além e considerar outros meios de mídia que tenham maior facilidade de circulação dentro e fora das bolhas de Magic, como um projeto multimidiático.

A série da Netflix é um ótimo primeiro passo nesse sentido, apesar da baixa expectativa dos fãs de que ela entregará muito após um inferno de desenvolvimento com troca de roteiristas e mudanças de personagens centrais. Há menos fé ainda no filme de Magic: The Gathering, que ainda não possui previsão de lançamento e pode demorar tanto tempo ao ponto de o hype em torno de Universes Beyond não apenas já ter morrido, mas também passado tempo o suficiente para o TCG ser completamente esquecido na mente coletiva.
Para suceder no imaginário popular, Magic precisa do seu Arcane. Um produto audiovisual cativante e convidativo até para quem nunca ouviu falar do jogo ou teve contato com os cards antes, mas até se considerarmos a parceria com a Netflix, este parece um desafio difícil de cumprir: suponhamos que a obra desperte o interesse de um determinado público no jogo com a trama envolvendo Ajani Goldmane e Chandra Nalaar, o quanto de evidência esses personagens possuirão no momento em que a série for lançada para ter mais representações em cards e/ou participação na lore atual do jogo, e como a trama geral será explicada para esse novo público para que eles não se sintam perdidos e relegados a ler paredes e mais paredes de texto para finalmente estarem a par do desenvolvimento desses personagens?
São necessários mais meios de manter a construção de mundo de Magic constantemente ativa na imaginação dos consumidores, e com três lançamentos principais por ano, é difícil imaginar que uma empresa do tamanho da Hasbro não consiga dedicar recursos em um material audiovisual narrativo compreensível e de fácil acesso em mídias como o YouTube, mesmo lugar onde a empresa investe para fazer seus anúncios e apresentar trailers de cada expansão.
Pense em algo como os trailers de Kamigawa: Neon Dynasty ou Dominaria United, que tentavam contar uma parcela da trama central daquela expansão por meio de animações curtas. Seria possível estender essas animações para episódios de dez minutos para cada capítulo da lore do jogo? O quanto isso custaria em termos de investimento e como isso agregaria para reforçar a identidade da marca Magic: The Gathering na cultura mainstream?
Em ambos os casos, no entanto, Magic esbarra em um problema fundamental de ser um jogo com mais de três décadas de existência: a história, por ser interconectada, é confusa para novas audiências.

Os próprios fãs mais recentes do jogo tendem a se apegar a personagens que gostam, ou planos específicos, mas em maioria tem pouco ou nenhum interesse no escopo geral dos acontecimentos. Muitos dos mais velhos se lembram de Urza, Lord High Artificer e a história do primeiro protagonista recorrente do jogo poderia ser um ótimo ponto de partida… exceto que, ao chegar em uma loja de card games para conhecer o “jogo do Urza”, este novo público cativado pela narrativa episódica do personagem até o fim da Invasão Phyrexiana descobrirá que esses eventos já ocorreram há mais de vinte anos, e têm muitos eventos para aquele consumidor (ou a série) precisariam se atualizar para conhecer.
Por outro lado, talvez não seja preciso se atualizar. A história de Urza é bem engessada por conta própria, com um início, meio e fim, apesar das consequências que levariam posteriormente à Nova Phyrexia. Outras pequenas histórias também poderiam ser contadas separadamente aos moldes de um LOVE DEATH + ROBOTS, onde cada episódio é antológico e conta a trama de um determinado plano ou personagem sem necessariamente seguir uma cronologia.
Existe também uma terceira opção, que conecta os eventos do jogo para uma possível cronologia em produtos audiovisuais.
Magic precisa de um Reboot?
Durante este texto inteiro, mencionei diversos eventos, personagens, momentos da história de Magic que poderiam ser retratados e como tudo na lore acaba interconectado porque a Wizards tem problemas em terminar arcos sem recorrer às possibilidades de reutilizar aquele tropo ou vilão no futuro.
Quando se está inserido no Magic, esses nomes e momentos podem ser familiares e, pelo menos através dos cards, os jogadores têm uma noção geral dos principais eventos de cada expansão, mas e quem se aproximou do card game porque gostou do sistema quando o conheceu via Final Fantasy? Como essa pessoa se sente sabendo que cada história por expansão hoje é praticamente isolada, com um arco maior surgindo em cada set? Histórias que não foram tão empolgantes nos últimos anos, como a jornada do Kellan em busca do seu pai, não teriam sido mais coerentes para esse público por acompanharem um só personagem?
Com tanta coisa que já aconteceu no Multiverso… seria melhor fazer um reboot?

Reboots são um tropo comum nas obras fictícias estadunidenses. Quando uma coisa fica complicada demais, ou quando não tem mais para qual rumo seguir com aquela história, torna-se mais fácil criar uma nova realidade (alternativa ou não) para reapresentar aquele universo com novos personagens, ou velhos protagonistas com maneirismos diferentes daqueles do “universo original”.
Recomeçar “do zero” (ou não exatamente do zero) daria ao novo público de Magic um motivo para acompanhar a lore — e para a Wizards um impulsionamento para integrar outras mídias na narrativa do card game — e também daria a oportunidade de corrigir alguns problemas inerentes que o longo desenvolvimento da trama trouxe, além de dar novas chances para alguns elementos que não foram devidamente aproveitados em outros tempos. E no momento em que estamos na trama hoje, existe até um motivo plausível para considerar a possibilidade.

No último capítulo da lore principal, Jace Beleren utilizou o Plano de Meditação de Nicol Bolas para tentar remoldar o Multiverso, revertendo a Invasão Phyrexiana e, consequentemente, os danos causados pela infecção de Phyresis nele e em Vraska. O plano dele envolvia utilizar o mapeamento do Multiverso presente na mente de Loot para reescrever a realidade, mas a magia era poderosa demais para o seu corpo e Jace foi reduzido a pó conforme o plano de meditação colapsava.
A última frase do capítulo, entretanto, deixa um cliffhanger: Jace parece ainda estar vivo, possivelmente dentro do Plano de Meditação, e seus planos agora são claros — reescrever a realidade e evitar todas as catástrofes que ocorreram no Multiverso. Se Jace suceder, o Multiverso provavelmente será resetado, o reboot perfeito.

Nasce, então, um novo herói ou heroína. Talvez o próprio Jace em outro multiverso. Este encontra outros Planeswalkers que formam novos protagonistas, talvez cada um com uma história individual que se esbarram em determinadas tramas, como ocorre hoje, ou como um grupo aos moldes da Gatewatch para uma nova trama. Quem sabe, eles não encontrem uma Nissa Revane que nunca despertou sua centelha? Ou uma Liliana Vess que nunca virou uma necromante?
Ou, talvez, eles não encontrem ninguém conhecido por muito tempo porque esses personagens deixaram de existir, e o que resta do “antigo Multiverso” trata-se apenas de fragmentos do que outrora foram as marcas de uma invasão que causou danos permanentes às Eternidades Cegas. E se Tezzeret, Cruel Captain escapou deste destino porque está no Limite das Eternidades? E o que seria de Phyrexia neste novo Multiverso?
As possibilidades são quase sem fim, mas as consequências também. Como alguém que acompanha a lore do jogo há mais de 16 anos, considerar que Magic poderia sofrer um reboot me faz torcer o nariz se ele não for logicamente explicado dentro das regras do Multiverso, e até dessa maneira ele ainda traz o receio de ter um excesso de retcons e a necessidade de apagar a história antiga também do imaginário dos jogadores para tentar adaptá-las para novas audiências.
É impossível negar que um reboot facilitaria a coerência da narrativa de Magic para este público e ampliaria, se bem aplicada nos meios certos de comunicação, o interesse de acompanhar a lore e os novos personagens em suas aventuras através de um Multiverso que, agora, é território inexplorado até para quem esteve no card game há trinta anos. Mas abdicar de toda a construção de mundo anterior para começar do zero seria um desrespeito ao legado histórico de Magic: The Gathering e de personagens que marcaram o jogo durante anos — mesmo que esse “reset” do Jace ocorresse, ter até alguns lampejos ou referências do “Multiverso Antigo” nas coleções seria um meio de honrar a longa trajetória do card game até aqui.
Particularmente, não parece existir um “caminho fácil” para fazer o Magic virar o produto mainstream que a Hasbro tem procurado torná-lo com as parcerias de Universes Beyond. Enquanto esse lado da esfera está bem solidificado, o lado que envolve reforçar a marca “Magic: The Gathering” para essa cultura mediante investimento na sua construção de mundo e em criar tramas engajadoras em novos formatos de mídia parece estar ainda dez passos atrás.
Cabe a Wizards decidir o que, no fim das contas, Magic precisa ser. Sem essa dedicação, eventualmente o card game será apenas como Lego: um rótulo e um conjunto de regras para qualquer marca que queira inserir seu nome ali. Pelo bem de longo prazo do jogo, é melhor que exista, dentro das salas de reuniões dos engravatados e nas discussões da equipe de design, um projeto ativo para tornar a lore um elemento crucial no projeto de tornar Magic uma ferramenta cultural.
Resta aguardar os próximos capítulos.
Obrigado pela leitura!












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