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Maria Leão, jogadora de Magic e historiadora, explica sua visão sobre o banimento de cada carta considerada racista pela WOTC

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revisado por Tabata Marques

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Olá, jogadores!

Eu sou Maria Leão, jogadora de Magic, apaixonada pelo Tron, licenciada e mestre em História e professora do ensino básico.

Hoje, escrevo para falar um pouquinho sobre um assunto que mistura as minhas “credenciais” colocadas acima: cartas banidas pela Wizards of the Coast por conterem um teor racista ou ofensivo a um povo ou uma cultura.

Primeiro, é importante que se diga que a WotC não explicitou no artigo do banimento o porquê de ter decidido banir estas cartas específicas. Por isso, meu papel aqui, como professora de História, é dar a minha avaliação do motivo de se banir estas cartas.

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Segundo, acho super importante que a gente compreenda que, sim, a WotC está respondendo a um apelo real e atual da nossa sociedade de mudar e se adequar aos tempos, e que isso vem em decorrência dos recentes acontecimentos ligados ao assassinato de George Floyd e aos protestos gerados por este trágico episódio.

Talvez alguém possa se perguntar o que um jogo de cartas, ambientado num universo fictício, tem a ver com racismo. A questão é que um jogo – assim como filmes, séries, livros, músicas – ajuda a construir um imaginário coletivo, uma forma de ver o mundo como sociedade que somos. Aí, talvez esse mesmo alguém pense: “mas eu não sou racista e jogar com essa carta não me torna racista”. Ok, pode ser verdade. Mas é preciso também pensar duas coisinhas sobre isso. Essas cartas ajudam a reforçar estereótipos culturais e raciais e contribuem para que uma pessoa racista veja seus pensamentos representados no jogo que ela gosta. Além disso, um jogador que sofra com racismo ou preconceito cultural pode se sentir incomodado e ofendido com estas cartas. Um jogo que pretende alcançar um público mais diversificado e amplo não deve ter, portanto, esse tipo de conteúdo.

O artigo da WotC explica que seriam removidas da database do site cartas que tivessem conteúdo racista ou ofensivo a uma cultura. Vamos ver, então, carta por carta, qual é o problema que eu identifico dentro dos conhecimentos históricos e de jogadora de Magic. Algumas explicações podem parecer mais óbvias, outras menos... O importante mesmo é que a gente, que ama esse jogo, possa parar para refletir sobre isso juntos.

Jihad

Jihad

A gente, que está inserido no que se chama de “sociedade ocidental judaico-cristã”, normalmente tem uma série de preconceitos quando pensa no Islamismo, seus seguidores e no Oriente de forma geral. Falou em “muçulmano”, vem à cabeça a Al Qaeda, terrorismo, homem-bomba, 11 de setembro, etc. Triste e perigoso esse tipo de pensamento.

A coisa fica pior porque a gente simplesmente não conhece – normalmente – os princípios da fé islâmica. E aí, julga outra cultura e outra religião sem dó nem piedade – e sem conhecimento de causa.

Jihad é um termo do Islã para falar no esforço pessoal de cada muçulmano de seguir a vida de acordo com o Corão e com os ensinamentos de Maomé. É também um termo que se liga à ideia de compromisso total com a religião - e pode ser aplicado tanto ao indivíduo quanto à coletividade e ao dever de espalhar a palavra de Deus pelo mundo.

Este termo foi reinterpretado para tratar, então, da “guerra santa” contra os “infiéis” (aqueles que não se converteram ao Islamismo depois de serem apresentados a ele). A imaginação ocidental e alguns episódios recentes que não definem o Islamismo, nos levam a conhecer só uma possível interpretação da palavra jihad (ligada à guerra) e a associar muçulmano a terrorismo.

A carta Jihad em questão mostra uma cena de ataque de homens caracterizados como árabes muçulmanos em meio a uma guerra – o que é, claramente, uma caracterização que reforça o estereótipo do árabe/ muçulmano violento. Portanto, por tudo que foi apresentado, pode ser considerada ofensiva à religião islâmica e seus seguidores.

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Stone-throwing Devils

Stone-throwing Devils

Existe um costume islâmico de apedrejar três muros grossos de cima de uma ponte, que representam o demônio; o apedrejamento dos muros é símbolo da rejeição do fiel às tentações que ele poderia oferecer. Esta tradição religiosa é realizada em uma localidade próxima à cidade sagrada de Meca.

A carta Stone-throwing Devils faz uma brincadeira (que podemos dizer que é de mau gosto) com esta tradição, em que os demônios é que atiram pedras de cima de um muro contra quem passa por ali.

Invoke Prejudice

Invoke Prejudice

Agora, vamos falar um pouco da história norte-americana, para falar da carta mais evidentemente ligada ao racismo dessa lista.

Os Estados Unidos têm um histórico conhecido de escravidão (principalmente no Sul), racismo e organizações de supremacistas brancos, como a Ku Klux Klan. É desse histórico que precisamos falar um pouco para entender a gravidade da carta.

Quando e por que surgiu a KKK? Ela foi criada no contexto do final da Guerra Civil americana, no final da década de 1860, por um movimento dos inconformados com a derrota do Sul, defensor da escravidão. A vitória do Norte, consolidando a existência e continuidade da união entre os territórios que faziam parte do país, e a aprovação da 13ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos (que abolia a escravidão e a servidão em todo o território) desagradaram um monte de gente.

Quem não gostou muito deste resultado da guerra, descontente principalmente com a 13ª Emenda à Constituição, se juntou e quis organizar um grupo cujo objetivo básico era impedir que os negros americanos tivessem acesso a terras, à escolarização, ao voto, entre outros direitos fundamentais de qualquer cidadão. Além disso, os integrantes da k-k-k ficaram conhecidos na História por suas ações violentas para aterrorizar, ferir, torturar e matar pessoas negras. Houve períodos em que a k-k-k deixou de atuar, e períodos em que voltou à ação. E, infelizmente, tornando tudo ainda mais grave, grupos de supremacistas brancos estão reaparecendo nos últimos anos (e não é só lá...).

Seguindo neste raciocínio, imagino que todo mundo conheça a vestimenta clássica de um membro da KKK: aquela espécie de túnica branca de mangas compridas, com um capuz pontudo. Portanto, após passar os olhos rapidamente pela arte da carta, que traz figuras conforme descrevi, segurando machados afiados, parece óbvio que a carta Invoke Prejudice traz nela um teor racista e violento, em referência bastante explícita à Ku Klux Klan.

Harold Arthur McNeill, autor da arte desta carta, publicou uma resposta às críticas feitas, dizendo que sua inspiração foi a Inquisição espanhola e que as mãos das figuras representadas são negras para evitar interpretações equivocadas. Não vou entrar aqui no mérito da sinceridade desta resposta, nem nas polêmicas em que este artista já se viu envolvido. O fato é que, falando mais uma vez da expressão-chave “imaginário coletivo”, a arte feita por ele nesta carta remete imediatamente à KKK, ajudando a perpetuar o racismo em nossa sociedade.

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Cleanse

Cleanse

Continuando a temática do racismo especificamente, vamos à carta Cleanse; é uma carta branca, cujo texto diz “Todas as criaturas pretas em jogo são destruídas”. Se pensarmos na palavra “cleanse”, “limpar, tornar puro”, e entendermos que o nome da carta poderia levar a uma associação, nesse sentido, a cor preta ao impuro ou sujo, perceberemos facilmente que ela é problemática, de fato.

NÃO estou, com isso, querendo dizer, de maneira nenhuma, que haja alguma associação direta ou explícita entre as cores do jogo e cores de pele. Nada disso; o ponto central é uma infeliz coincidência entre o nome e o efeito da carta. Aqui não se trata de “universo fictício” x “mundo real”, e, sim, do IMAGINÁRIO construído na cabeça das pessoas, como comentei no início deste artigo. Associar o nome desta carta, “Cleanse”, “limpeza” (uma ideia difundida entre grupos defensores da supremacia branca) à questão de cores mencionada reforça esse imaginário tão nocivo historicamente construído.

Precisamos também levar em conta o histórico existente de projetos de “limpeza racial”, de “purificação racial” que já foram pensados – e postos em prática! - ao longo da História. Acredito que deva ter vindo à sua mente a imagem do Hitler. Mas não me refiro somente ao Nazismo. Este projeto existiu também no Brasil. Pois é, na terra da suposta (e falsa!) existência de uma “democracia racial”, já houve projetos que tinham como objetivo “purificar” o povo brasileiro “embranquecendo-o”, trazendo imigrantes europeus, no final do século XIX e início do XX. A ideia era que a miscigenação levasse, ao fim e ao cabo, a um povo mais branco e europeizado, “livre” de suas origens africanas e indígenas. O povo brasileiro, nesse raciocínio científico (sim, isso era ciência nessa época, por mais inacreditável que possa parecer aos nossos olhos), da virada do século XIX para o XX, seria muito melhor quanto mais branco fosse.

Nós já descartamos, como sociedade, esta perigosa e retrógrada concepção científica, com provas mais do que suficientes de que essa ideia de embranquecimento populacional como sinônimo de progresso é absurda, mas, lamentavelmente, ainda existem grupos que pensam assim, que quanto mais branca for uma sociedade, melhor ela é. Daí a importância de refletirmos sobre esta infeliz associação entre as cores envolvidas na carta e o nome “Cleanse”...

Imprison

Imprison

Esta carta faz uma referência que, a meu ver, está diretamente ligada à escravidão. Vemos na arte a figura de um homem de pele negra, com uma máscara de ferro. Máscaras como a representada na imagem são associadas a formas de punição para escravizados que desobedecessem a seus senhores. Relembrar na arte desta carta uma prática tão cruel de um passado que ainda deixa marcas profundas em nossa sociedade – e, nisso, incluo Brasil e Estados Unidos - não parece uma boa ideia, mesmo porque ela naturaliza, no nosso imaginário, as violências a que foram submetidos os escravizados na Idade Moderna.

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Crusade

Crusade

As Cruzadas foram as “guerras santas cristãs” do final do século XI até o século XIII, convocadas pela Igreja Católica com interesses religiosos e econômicos, tanto por parte do clero quanto da nobreza europeia.

Glorificar uma guerra travada entre cristãos e muçulmanos é muito equivocado. Foram guerras violentas, em que imperou a intolerância religiosa, e não são eventos, pelo que me parece, a serem enaltecidos no jogo, mas compreendidos em seu tempo e analisados de forma crítica.

Pradesh Gypsies

Pradesh Gypsies

Ciganos são um povo nômade cuja origem mais provável é o norte da Índia (Uttar Pradesh), de onde teriam partido para fugir das invasões e perseguições de muçulmanos e mongóis nesta região. São povos que, devido à sua vida nômade, seus costumes e sua língua diferentes dos europeus, eram vistos como exóticos nos reinos da Europa, provocavam desconfiança por onde passavam. Durante o final da Idade Média e início da Idade Moderna, no continente europeu, muitos ciganos foram acusados de bruxaria pela Inquisição, julgados e condenados à morte. Puro preconceito com o desconhecido. Vale lembrar que os ciganos foram um povo perseguido inclusive pela Alemanha Nazista.

O que está presente em nosso imaginário sobre os ciganos? Convido você a pensar sobre isso. O que vem à sua mente ao pensar nestes povos? Provavelmente, uma dança e música específicas, atividades esotéricas (você pode ter pensado em uma cigana lendo a mão de alguém), e, talvez, a ideia de trapaça, maldade, malícia, habilidades usadas para o mal, que normalmente vêm no pacote do estereótipo de cigano. Tudo isso contribui – e contribuiu, ao longo da História - para sua perseguição.

A carta Pradesh Gypsies faz uma referência estereotipada aos povos ciganos e uma referência colocada no próprio nome à sua região de origem. A palavra “cigano” foi usada muitas vezes de forma pejorativa, como rótulo negativo sobre aqueles assim chamados. E o texto da carta também não ajuda muito... Em tradução livre, diz “Um povo misterioso, de fato. Suas origens são tão secretas quanto suas tradições.” É o reforço, insisto, de uma imagem caricatural que levou à perseguição sistemática desses povos ao longo da História.

Conclusão

Precisamos ter sempre em mente que, ainda que se trate de um jogo de cartas com um multiverso próprio, qualquer alusão ao racismo ou a preconceitos culturais faz parte da construção de um IMAGINÁRIO COLETIVO que perpetua essas ideias em nossa sociedade.

Acredito que a WotC esteja, a seu modo, com este banimento, tentando contribuir para a reflexão de seus jogadores a respeito deste tema tão delicado e importante que é a construção de uma sociedade antirracista.

Talvez este seja um momento propício para que a WotC comece a refletir também sobre cartas existentes que trazem artes com outros tipos de questão a serem debatidos, como, por exemplo, algumas representações de personagens femininos. Assim, poderemos, cada vez mais, ter um jogo que contemple a todos e contribua para uma mentalidade coletiva mais saudável e respeitosa com seus vários e diversos jogadores.

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