Permitam-me ilustrar a minha tese neste artigo com base em alguns fatos ocorridos nos últimos meses. Alguns são situações regionais, coisas que presenciei pessoalmente. Na realidade, muito do que estou propondo o debate aqui é feito, em essência, de conversas que tenho com lojistas, jogadores e outros criadores de conteúdo, somados a alguns eventos ocorridos no Brasil e no mundo. Prometo, todos farão sentido no final.
O primeiro evento foi o Pokémon Day em uma loja local. Loja essa que, outrora, era integralmente dedicada à Magic, mas tem cada vez mais dado espaço para outros card games em seus calendários semanais.
A proposta era simples: venha para a loja, conheça o jogo de Pokémon TCG e aprenda a jogar com nossa equipe. Particularmente, fui para prestigiar o evento, ver os resultados, e eles excederam as expectativas — mesas cheias, filas na porta, pessoas que nunca haviam se conhecido conversando sobre uma paixão em comum, ou aprendendo sobre um jogo novo. No final da tarde, um torneio para os jogadores mais experientes garantiu que houvesse uma mescla entre quem era acostumado com o TCG poderia ensinar outras pessoas e quem estava lá para ver como o card game funcionava. Absolutamente tudo movido por um único nome: Pokémon.
Coloque na soma acima uma declaração recente de Tsuzenaku Ishihara, CEO da Pokémon Company, onde afirmou ver um futuro no qual, se eles continuarem a manter o seu foco, ele enxerga Pokémon completando 50 ou 100 anos.
O segundo evento é a rápida ascensão do One Piece TCG. Em números brutos, ele foi o segundo card game mais vendido da TCGPlayer no último trimestre de 2024. Se separamos os produtos de Magic entre Set Booster e Collector Booster, One Piece foi o card game mais vendido de 2024 no marketplace.
O terceiro evento, também regionalizado, foi o anúncio pela Copag de que Lorcana chegará ao Brasil. Diferentemente de Flesh and Blood ou Altered TCG — outros dois que chegaram ao Brasil —, o Lorcana dispensou apresentações. De alguma maneira, muitos já sabiam do que se tratava e até pessoas que não eram do nicho de card games tinham alguma noção de que se tratava de um “jogo da Disney”.
Por fim, o quarto evento e o mais recente foi o anúncio oficial de Riftbound, o TCG de League of Legends cujos primeiros produtos foram revelados na última semana. Enquanto ainda não temos noção do seu impacto mercadológico, pois ele chegará ao ocidente em outubro, a conversa entre as comunidades de card games que estão interessados no “TCG de LoL” e os jogadores de League of Legends que estão interessados em colecionar o “jogo de cartas do LoL” já é bem fervorosa em poucos dias desde o anúncio.
Em resumo, os fatos foram:
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Por mais distintos que pareçam, com exceção de serem card games, eles possuem um elemento em comum: cultura - um fator crucial na hora de fomentar um jogo e torná-lo atrativo para quem é de fora enquanto engrandece o pertencimento de quem já está dentro.
O que todos eles possuem também é um nome. Obras como Pokémon e One Piece são famosas, e apesar dos títulos distintos, Riftbound e Lorcana possuem figuras imagéticas fáceis de identificar pelo público mais amplo e cativado durante anos. Todos sabem quem é o Mickey, muitos reconhecem a Jinx.
Agora, podemos ir direto ao ponto: Magic não tem isso. Magic carece desse aspecto cultural.
Os personagens do jogo, a lore, as referências, ou ilustrações, não conseguem atingir um escopo amplo de pessoas fora da bolha do card game. Elas não sabem quem é Jace, e pior, elas não se importam com quem é Jace, tal qual não relembram a Guerra dos Irmãos, muito menos os eventos da Invasão de Nova Phyrexia — eles não fazem ideia de quem é Nicol Bolas e por que é tão perigoso que ele esteja liberto de novo. No geral, a maioria dos jogadores de Magic sequer se importa com a lore do jogo.
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Dominaria, o plano onde a primeira década de Magic se passou e viveu um período de conflitos constantes? Elas não fazem ideia do que significa. Magic não consegue fomentar sua própria cultura e exportá-la para um público mais amplo, e essa pode ser a ruína deste card game.
Para muitos, ele tem o mesmo peso de um board game glorificado, ou de figurinhas colecionáveis. Falta-lhe alma, essência. E não ignoro a história rica e cheia de personagens e momentos memoráveis de Magic: The Gathering. Mas conheço esse jogo há dezesseis anos. Me aprofundei no seu universo como um hiperfoco, me deixei envolver com esses personagens e universos.
O mundo lá fora? Ele não tem motivos para fazer o mesmo. Magic não os oferece, falta-lhe cultura para além do card game, e nos últimos anos, motivação para além do lucro. Para um jogo cujo sobrenome inclui The Gathering, Magic tem uma dificuldade absurda de unir pessoas de fora do seu círculo e ser algo além de um produto a ser vendido.
Sobra para a Wizards/Hasbro a decisão de tomar uma de duas rotas: reforçar sua identidade cultural perante um público mainstream, ou abdicar da sua própria persona e aceitar o papel de ser um sistema de jogo e buscar a identidade de outros lugares para estabelecer o seu Gathering.
O caminho, neste momento, está sendo o segundo: Universes Beyond e o planejamento de três sets no ano dessa série significa que Magic está disposto a abdicar da sua propriedade como um universo sólido capaz de cativar em prol de focar no aspecto jogo e deixar a identidade para Final Fantasy, Marvel, Avatar, Tolkien, ou qualquer outro que ofereça uma parceria mutuamente benéfica.
Em um mercado onde marcas maiores passaram a ter seus próprios card games e/ou onde outros que nasceram na mesma época obtiveram muito mais sucesso, é a melhor coisa que a Wizards faz hoje em prol de ampliar o escopo do jogo em mainstream. Magic precisa se estabelecer como cultura se quiser continuar sucedendo, e se o universo do jogo não faz isso por conta própria, abdicar dele em prol de unir pessoas de paixões distintas em torno de um único sistema pode ser a chave para torná-lo um hit dentre diversos públicos — afinal, apesar das críticas e falhas do sistema de mana, Magic ainda é um dos melhores card games do mundo em termos de gameplay.
O que define cultura em um Card Game?
Existe uma dúzia de respostas a depender do prisma em que a pergunta é colocada, mas gosto da relação que o Marketing faz da palavra com o gesto.
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Cultura é a relação do produto/marca com o consumidor e vice-versa, de maneira que aquilo faça parte da vida dela, seja seu espaço de pertencimento e seu espaço de conexão com outras pessoas — aquilo que desperta paixão e momentos memoráveis e os faz desejar compartilhar dela com os outros. Quanto mais pessoas se apaixonam pela marca, mais pessoas a conhecerão.
Pense em um dos maiores produtos capitalistas de todos os tempos, a Coca-Cola. O refrigerante se vende por conta própria e suas garrafas costumam estar na mesa das reuniões de famílias de domingo há décadas, ou suas latas nas mãos das pessoas nos mais diversos ambientes sociais, ou restaurantes. Isso não impede a empresa de, perto do natal, lançar uma propaganda mais voltada para a reunião familiar, ou aquela coisa com um urso polar (que eu, particularmente, nunca entendi direito). A razão é um lembrete de que aquele produto faz parte do seu natal em família.
É um caso clichê, está se perdendo e pode dissolver conforme a televisão deixa de ser o principal meio de comunicação em massa, mas é o exemplo que qualquer um possui uma memória de ter assistido.
No universo dos TCGs, as métricas diferem. Apesar de o consumo ser o objetivo-chave de qualquer empresa, experiência conta muito, e podemos fazer algumas perguntas para avaliar como a cultura daquele card game existe e quais as formas de manifestação dela dentro e fora do seu público.
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Magic oferece quase todos esses elementos de alguma maneira: ele cria um senso de pertencimento entre seus jogadores que estabelecem diversas gamas de comunidades que vão do público casual de Commander até os Spikes, jogadores altamente competitivos buscando seu momento de glória no Pro Tour.
Ele participa ativamente da vida dos seus jogadores por meio de discussões de decks ou outros assuntos nos fóruns online, desenha hábitos em torno de si como a cultura de sleeves, playmats, uma linguística própria, e a existência de um universo narrativo em torno da sua construção de mundo, e também promove espaços de jogos ou eventos quase todos os dias em milhares de lojas ao redor do mundo, mesmo que esses não sejam sempre os ambientes mais convidativos para quem vê de fora.
Magic como um esporte
Também não se deve desconsiderar a importância da cultura de jogo em Magic. Quando assistimos a um Pro Tour (por mais que ele careça a perícia técnica e da beleza estética que alguns outros jogos ou os eSports oferecem em suas transmissões de torneios de alto nível), estamos fomentando o jogo competitivo enquanto, ao mesmo tempo, alimentamos um aspecto mais tribalizado — e notoriamente minimizado — dos TCGs hoje, mas ainda tão importante quanto sempre foi: a da sua natureza como um esporte.
Há diversos momentos em que a importância do TCG como esporte competitivo é evidente, mas um dos meus favoritos recentes veio das finais do Calling São Paulo de Flesh and Blood, onde o carioca Carlos Eduardo ganhou as finais em uma partida altamente disputada, e o momento do anúncio da sua vitória veio acompanhada de todos os seus companheiros de equipe indo até a mesa parabenizá-lo no melhor estilo brasileiro.
O momento ocorre após a hora 07:57:16 do streaming ao vivo.
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É uma cena bonita de se ver e ilustra perfeitamente o que cultura de esporte significa em um card game. A emoção, a torcida que muitos fizeram pelo Carlos enquanto ele jogava a final, a comemoração dos seus companheiros e de quem assistia ao vivo no streaming, o orgulho do jogador de ter o seu primeiro título no Flesh and Blood.
Magic é muito capaz de reproduzir esses momentos — desde que você não seja da América Latina ou de países menos desenvolvidos, mas essa é uma conversa para depois — ao ponto de, outrora, tentar seu espaço no universo do eSports, um esforço que foi lamentavelmente fracassado pela mistura de falta de estrutura do MTGArena em tempos de pandemia e muito amadorismo nessa área por parte da Hasbro.
O problema, no entanto, está no último fator: as manifestações culturais de Magic fora do seu espaço de jogo são muito pequenas e a marca do card game significa muito pouco para o público mais amplo. O que atrai, por exemplo, um grupo de pessoas mais jovens a experimentar Magic ao invés de outros produtos? Por mais irrelevante que possa parecer, eles em alguns anos serão os adultos tentando ganhar um Pro Tour, e eles querem ser os campeões de Magic, de Pokémon, ou de One Piece? Ou estarão mais interessados em Riftbound?
Dos adultos que chegam no jogo agora, quantos sabem o que é um Pro Tour, ou se importam em pensar em competir em um evento como MagicCon ou Spotlight Series? Quantos sequer têm um motivo para pensar em competir? E quantos conseguem compartilhar sua paixão por Magic com outras pessoas fora do círculo do próprio card game?
Dos amigos, familiares e relacionamentos desses jovens e adultos, quantos se interessam em participar ativamente do hobby daquela pessoa? O quão convidativo Magic está sendo para eles? Como exatamente Magic está propondo que essas pessoas participem, ou que a marca seja conhecida globalmente como algo que qualquer um pode jogar?
Há alguns meses, durante o Pro Tour Duskmourn, fizeram um comentário comigo que pairou na minha cabeça por um tempo: "este jogo é feio de assistir".
Ele veio de alguém da área de comunicação esportiva e estética de produtos, mas não se referia apenas no sentido visual da transmissão, mas também do comportamento dos jogadores; ao pedir uma elaboração, a resposta poderia ser resumida em "ele parece xadrez, os jogadores se comportam como se estivessem jogando xadrez, e a transmissão se esforça muito em fazer parecer algo mais cool do que xadrez, e fica uma atmosfera pouco esportiva. Não há energia ou carisma de um esporte em qualquer lugar."
Eu não poderia concordar mais. No Pro Tour Aetherdrift, decidi olhar por esse escopo e talvez não ajudado pela estética visual da expansão ser absurdamente cringe, percebi o mesmo problema. Os comentaristas são bons, os hosts fazem um excelente trabalho em apresentar o evento, mas a energia do esporte não está lá. A apresentação visual das informações não torna a transmissão convidativa para quem é de fora se interessar — Magic é, de fato, feio de assistir e pouco empolgante de torcer.
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E nem é necessário ser outro tipo de jogo para sentir a empolgação. Por mais que muitos não gostem das comparações, basta assistir a alguns jogos do EUIC mais recentes de Pokémon TCG e você percebe a diferença de energia e atmosfera tanto na mesa quanto no público de fora. As pessoas ali parecem estar se divertindo - os jogadores no Pro Tour de Magic, não.
E, por favor, se por acaso alguém do RP ou do Marketing da WotC leia este artigo, não tente dizer para os jogadores parecerem que estão se divertindo, só deixaria a situação mais forçada. Magic tem muito potencial como um esporte competitivo, mas ele precisa ser aplicado esteticamente da maneira correta dentro e fora das transmissões; e isso vem de publicidade bem-aplicada, mudanças no padrão de comportamento do público consumidor e a quebra de estigmas sociais na percepção pública do produto.
A Solução de Universes Beyond
E voltamos para Universes Beyond. Jogadores de longa data o odeiam, novos jogadores o adoram, e há uma enorme massa da comunidade que reclama muito, mas compra. Além disso, existe uma parcela que também não se importa se está jogando com o Urza ou com o Sephiroth, mas em jogar Magic.
A solução para MTG se tornar uma força cultural mainstream passa, como mencionamos acima, por duas frentes: reforçar a identidade do seu universo maneira envolvente, ou usar da identidade de outras marcas para reforçar o seu jogo — a série da Netflix e o filme são o primeiro caso, Universes Beyond é o segundo.
Tenho poucas esperanças de que a série de Magic se tornará um caso de sucesso. A Wizards não é a Riot e muito menos tem a maestria narrativa e uma base de fãs suficientemente apaixonadas para engajar ao nível de estourar sua própria bolha, sem contar que o projeto já passou por tantas mudanças ao ponto do resultado provavelmente ficar abaixo das expectativas dos fãs, sendo elas já baixas e com um público que se entretém em falar mal.
O filme não deve sair antes de 2030, e pode demorar mais do que um asteroide com possibilidade de cair na terra em 2032 a chegar, então trata-se de um investimento arriscado e de longo prazo, e dado o histórico do universo cinematográfico de D&D, as expectativas também podem ser baixas.
No tempo curto, Universes Beyond é a maneira como Magic pretende se manter relevante. Apesar de não abdicar completamente da sua lore, a própria Wizards durante o MagicCon Vegas de 2024 denominou Magic como uma “IP” (propriedade intelectual), não diferente de outras marcas, e o fato de metade dos sets de 2025 e provavelmente de 2026 serem de Universes Beyond deixa algumas mensagens sobre como a empresa enxerga o jogo.
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A mais positiva é de que Magic quer focar no Gathering, e nada é mais Gathering do que juntar pessoas com paixões iguais ou distintas em um mesmo sistema de jogo. Sim, este é um passo mais largo no lado do Commander do que na saúde estética do competitivo — que começaria a ganhar traços de Fortnite —, mas este passo de usar o Commander como principal ferramenta social do jogo já foi aplicado há muitos anos.
Do outro lado, Universes Beyond é mais lucrativo. Magic diminuiu 1% no último trimestre de 2024 e a responsabilidade caiu no fato de não existir um set de Universes Beyond como Lord of the Rings para ampliar as vendas de produtos durante o ano. É comprovado pela velocidade com que os produtos de Secret Lair da Marvel ou os preorders de Final Fantasy esgotaram que trabalhar com outras marcas gera mais receita, e ultimamente Magic tem se transformado em uma máquina de fazer os números subirem.
O problema de Universes Beyond
Tanto faz a crise de identidade — prefiro mil vezes uma expansão de Avatar do que uma na qual Ravnica inteira decidiu usar Fedora e bancar o detetive — ou que Magic está colocando Universes Beyond demais em um único ano — esses produtos deveriam ser anuais —, a maioria dos jogadores está disposta a aceitar essas novas IPs no seu card game favorito, desde que este não atrapalhe o fluxo do seu aproveitamento do jogo, o que Magic, infelizmente, está dando todos os sinais de que vai fazer.
Em outro artigo, mencionei como Universes Beyond pode suprimir a disponibilidade de Magic na América Latina pelos aumentos repentinos de preços. Recapitulando: todos os sets de crossovers possuem a precificação de um produto premium aos moldes de Modern Horizons, e uma das minhas reivindicações de porque Universes Beyond deveria ser anual é porque isso cria tempo para os jogadores se prepararem financeiramente e comprarem um “set mais caro” durante o ano.
Produtos mais caros significam que eles são menos acessíveis e até menos atrativos para o público-alvo deles. Sim, jogadores de Magic estão em maioria dispostos a comprar um pouco menos de Tarkir: Dragonstorm ou Edge of Eternities em prol de mais Final Fantasy e Spider-Man, ou até pagar um pouco mais caro para ter o seu deck de Commander do Cloud, Ex-SOLDIER.
O efeito para os fãs dessas marcas, no entanto, é de uma imagem negativa. Como explicar que um bundle de quatro decks de Commander de Final Fantasy é tão caro quanto um console? Ou para o fã de Homem-Aranha que ele vai ter de pagar um pouco mais caro nos produtos do que ele deveria só porque é do Homem-Aranha?
“A Wizards é uma subsidiária da Hasbro, a Hasbro é uma empresa e Magic é um produto a ser vendido” — Essa frase comum nos meus artigos nos últimos três anos será uma máxima até que, por algum motivo, Magic deixe de pertencer à Hasbro.Ad
Nesse tempo, ficou evidente que a Wizards se tornou a principal fonte de receita e lucro da Hasbro, tanto com Magic: The Gathering quanto pelo sucesso estrondoso de Baldur’s Gate 3, e cada vez mais tem ficado claro que a empresa tem priorizado acréscimo contínuo de lucros acima da saúde de longo prazo das suas marcas.
Mas números não podem subir para sempre.
Uma hora, a linha do lucro vai deixar de crescer. Jogadores antigos podem ser alienados pela mistura de velocidade de lançamentos (são seis sets de Standard por ano agora) e acréscimo contínuo de preços (desses seis, três possuem valor sugerido de um produto premium e as boxes vêm com menos boosters), e os novos podem se afastar quando o keep up ficar pesado demais também, enquanto os fãs das marcas com quais Magic tem feito parcerias podem se interessar apenas naquele produto da sua marca favorita e se afastarem em seguida pelo mesmo motivo dos demais — Enquanto Universes Beyond tiver recorrentemente preços de produto premium, mais a Hasbro estica a corda dos limiares que os jogadores de Magic podem aceitar financeiramente.
Os primeiros públicos afetados por esse efeito são os que têm menos dinheiro sobrando para comprar esses produtos. Não são apenas pessoas que talvez recebam um salário menor e, portanto, não podem comprar tudo o que querem, são também pais e mães de família, aqueles que possuem custos adicionais com estudos e outros projetos pessoais, ou até os que investem em outros hobbies — inclusive card games — também.
Tirar dessas pessoas a oportunidade de jogar Magic porque seus preços se tornaram muito restritivos para eles acompanharem cria uma reação em cadeia. Eles não conversarão sobre o jogo com seus amigos e familiares, não os apresentarão a uma loja local para aprender, e consequentemente não vão agregar na quantidade de fãs do TCG que mantém a máquina rodando.
Se pessoas não falarem sobre Magic, o crescimento do jogo fica estagnado. Se o marketing de Magic ficar negativo porque é caro demais, menos pessoas serão encorajadas a sequer tentar ingressar nele ao invés de outro card game, e se a imagem que a Hasbro quiser passar é de um hobby para as elites, o escopo do público-alvo se torna muito menor.
Com um público-alvo reduzido e limitado ao título de produto de elite, o que vai acontecer com Magic: The Gathering se ele deixar de ser um investimento confiável para a bolsa de valores? Quando seu alcance for limitado a scalpers e colecionadores em busca de um hobby de luxo, ele ainda será atrativo para aqueles a quem a Hasbro serve hoje?
Estaria a empresa tão ocupada em fazer Magic se transformar em um NFT de papelão para se importar com o fato de que o “esse produto não é para você” está se aplicando a cada vez mais pessoas conforme eles afinam o escopo de potenciais consumidores ao ponto de que todos que se interessarem no Standard, por exemplo, precisam agora investir mais do dobro do que no ano passado para acompanhar o jogo?
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Afinal, qual futuro podemos esperar para um jogo que, em detrimento da sua própria produção de cultura tanto como esporte quanto como ferramenta de interação social entre diferentes percepções do mundo, está priorizando uma linha fina de consumidores mais elitizados que podem pagar os preços elevados de Universes Beyond várias vezes no ano e consumir mais dos famosos drops de Secret Lair que esgotam em poucas horas?
Que futuro existe para uma marca que, ao mesmo tempo, se diz dedicada a ser mais inclusiva e cria cada vez mais barreiras que limitam o acesso ao seu produto principal, especialmente para os fãs de outras marcas e universos?
Qual tipo de cultura essas atitudes fomentam no seu público? Quando se tira a localização em um idioma latino-americano, por exemplo, que categoria de pessoas a empresa está indiretamente afirmando que não vale investir tempo e dinheiro em cativar novas gerações de jogadores naquela região?
Por fim, como Magic pode crescer como parte do imaginário popular e ser comparável com outras IPs que conquistam seu espaço, ou estão ganhando cada vez mais notoriedade em detrimento de um card game que, outrora, estava na vanguarda do que definia ser um bom jogo?
Talvez, a Hasbro tenha certeza demais de que possui o melhor card game do mundo em suas mãos. E eles possuem — Mas ser o melhor card game do mundo não fará com que Magic fique no topo para sempre, não sem alimentar o Gathering, e definitivamente não se a empresa priorizar o lucro em detrimento da sua própria construção de imagem e impacto cultural na comunicação popular.
Magic e os Dilemas Culturais
Vamos terminar este artigo com uma história.
No dia seguinte, conversei com a organização do evento de Pokémon Day mencionado acima — trata-se de alguém que, assim como eu, é um jogador de longa data de Magic. Começou em Quarta Edição e acompanhou o jogo por muitos anos até decidir abrir sua própria loja.
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Meu interesse na conversa era muito claro: entender os fundamentos daquele evento, porque ele funcionou tão bem e como isso poderia ser transmitido para outros card games. Por mais simples que fosse, um evento de TCG atrair tantas pessoas que não pertencem a este universo de forma orgânica despertou a curiosidade.
De início, existiram alguns pontos em comum que concordamos. O primeiro foi o cerne da escrita deste artigo: Magic carece de uma cultura que tenha o mesmo impacto social. Um exemplo foram os Open Houses, que ocorriam no período pré-pandemia para atrair um público novo e ensiná-los a jogar Magic — você podia fazer um bom anúncio com bons motivos para participar, mas “venha jogar Magic” nunca seria tão atrativo como “venha jogar Pokémon” porque as pessoas se importam menos com Magic, não existe um produto imagético hoje que faça Magic ser reconhecido. Havia concordância também que outros jogos como One Piece e o novo Riftbound teriam muito mais sucesso nessa prática do que outros títulos cujo IP não está no imaginário coletivo, como Flesh and Blood.
Além da carência de uma cultura própria, um problema foi eventualmente mencionado: existe uma cultura negativa nos card games. No caso do Magic, potencialmente enraizada de ser um jogo nascido nos anos 90 e que, por muito tempo, foi o hobby de um público socialmente isolado que encontrava no jogo um refúgio — Esta se manifesta de muitas maneiras, como a percepção de jogadores mais antigos muito negativa sobre a realidade de Magic hoje e sobre Universes Beyond, até a maneira como esses podem, de forma direta ou indireta, agir contra iniciativas que atrairiam um público novo.
Um bom exemplo poderá ser visto com Spider-Man. Quando mencionada a possibilidade de fazer um "Magic Day" usando os Welcome Decks que virão no set, o primeiro resultado que passou em nossa cabeça — caso uma loja não controle muito bem a distribuição deles — seria a de uma dúzia de jogadores e scalpers participando para conseguir os decks com cards exclusivos do Homem-Aranha para tentar vendê-los depois por algum preço super faturado em um marketplace, arruinando o propósito do evento de trazer mais pessoas para o Magic, que é um dos objetivos da série Universes Beyond.
Pokémon também possui suas “laranjas podres”, em especial scalpers e trapaceadores — há um vídeo onde duas pessoas literalmente trocam socos por uma booster box —, e a resposta de porque um evento desse porte é possível apesar deles envolve dois fatores: a falta de valor agregado nos decks iniciais somado com o fato do público de Pokémon em muitas regiões ser mais diverso em gênero, demografia social e idades. E consequentemente, uma “laranja podre” tem mais dificuldade de fazer barulho o suficiente, ou acaba tendo de se retirar quando se torna um incômodo.
Outro fator que se torna um impeditivo para esses comportamentos e traços mais tóxicos envolve uma mistura do ciclo de renovação natural de Pokémon, dado que muitos jovens começam a colecionar os cards e têm interesse em jogar, ou já entram de cabeça no card game e crescem jogando — algo que, no Magic, precisa ser impulsionado pela força externa de outro jogador — além disso, diferente de um Walmart ou semelhante, a loja local tem o poder de, se quiser, controlar o ambiente em que esse público está inserido, criando mecanismos para evitar práticas que considerem nocivas nas suas comunidades. É possível fazer isso em outros card games? Sim, mas alguns deles já possuem uma cultura tão enraizada que têm dificuldades de mudar porque o público não se renova.
Por mais que muitos fãs de outros TCGs afirmem que Pokémon jamais deveria ser usado de referência no segmento, o ideal seria o contrário: todo card game deveria buscar o alcance e sucesso que uma marca como Pokémon conseguiu ter dentro do seu segmento, e entender como funcionou, porque funcionou, e o que se aplica desse caso no seu produto.
Houve, entretanto, uma pergunta que não conseguimos responder: o que está faltando?
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A verdade é que, como brasileiros inseridos em uma realidade específica, é difícil apontarmos com precisão quais caminhos Magic poderia tomar para melhorar seu alcance como objeto cultural.
Assim como apresentado durante este artigo, restam dúvidas de se essa é uma prioridade da Wizards, se há uma solução prática e até se Universes Beyond é a saída e se o público geral gostaria da ideia de jogar com diversos cards de IPs distintas em um mesmo sistema.
A única certeza é que a Wizards of the Coast deveria se preocupar em se transformar para além do jogo e tornar-se um objeto de cultura popular. Algo reconhecido por mera linguagem visual e que faça as pessoas cobiçarem o produto por ele ser Magic conforme o mercado de competição de marcas muito mais fortes que o seu TCG só cresce a cada ano — mesmo que esse “ser Magic” signifique apenas ser o melhor sistema de card games do mundo.
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