Magic: the Gathering

Opinião

O Futuro do Magic no Brasil

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O fim da produção de Magic: The Gathering em português é o primeiro sinal de que ainda temos muito a perder... E podemos perder.

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revisado por Tabata Marques

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Antes de começarmos a abordar o tema deste artigo, há um breve desabafo a fazer: precisei recomeçar este texto mais vezes do que qualquer outro nesses quatro anos de produção de conteúdo para esse jogo.

Assim como quase toda a comunidade de Magic no Brasil, não recebi bem a notícia de que a Wizards estaria cortando a localização do jogo em português após Modern Horizons 3link outside website. Não podemos dizer que essa mudança não era esperada desde fevereiro do ano passado, mas saber das possibilidades não tornam delas menos amargas.

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Comecei a jogar Magic aos 15 anos, em 2008, junto do lançamento de Fragmentos de Alara. Hoje, faz 15 anos que participo e acompanho este jogo, e conforme passei a assistir torneios e outros grandes eventos de outras regiões, mais evidente ficava que existia uma barreira muito maior para nós do que para países do norte global, tanto financeiras quanto de oportunidades.

Ainda assim, conseguíamos prevalecer e deixar nossa marca no cenário. Carlos Romão, Willy Edel e Paulo Vitor Damo da Rosa são três dos nomes mais reconhecidos da história do cenário competitivo, os três são brasileiros, dois deles se tornaram campeões mundiais. Há esperança, visibilidade e o sentimento de que, apesar das dificuldades, o Brasil consegue prevalecer e estar presente no Magic competitivo.

Os anos passaram, este jogo ficou bem mais popular, lojas surgiram em vários cantos do país e, pela primeira vez desde o meu primeiro contato com ele, eu sentia que Magic estava deixando de ser um sub-nicho para virar algo maior, e havia ali o fundamento para a construção de uma comunidade forte, onde nossa visibilidade perante o mundo estava crescendo.

Magic trouxe muitas coisas para a minha vida, boas e ruins. A mais importante delas foi exatamente o que estou fazendo agora: a possibilidade de produzir conteúdo e compartilhar minha visão com o mundo. De alguma maneira, este jogo influenciou inúmeras decisões na minha vida, e criar de conteúdo expande sua percepção de vários detalhes que, muitas vezes, você negligencia como jogador - Um desses, essencial para esse assunto, é a maneira como a relação entre colonizados e colonizadores e sua natureza intrínseca no capitalismo opera neste meio.

O Brasil é um país de proporções continentais onde, apesar dos progressos que as mídias digitais trouxeram, nós ainda vivemos sob a perspectiva de que possibilidades existem ou deixam de existir conforme a região onde você está. A mesma lógica é aplicável quando falamos de relações entre o norte e o sul global: novamente, você ser latino no Magic e residir na América do Sul é, consequentemente, precisar se esforçar e investir mais para obter os mesmos resultados.

Então é claro que a comunidade se sentiu representada quando a Wizards abriu um escritório no Brasil, é claro que sentimos que estávamos crescendo e ganhando visibilidade e é claro que nos sentimos "parte daquilo" quando vimos figuras do nosso imaginário popular jogando Magic em um material promocional, aquilo era nosso - Nosso para nós, nosso para o mundo.

Em fevereiro de 2023, seis meses após o lançamento da publicidade acima, a Wizards of the Coast fechou seu escritório e seus canais de comunicação oficiais com a América Latinalink outside website. O presságio ruim estava ali, era só questão de tempo.

Nesses meses, aquela sensação que eu tinha lá em 2012 havia voltado: precisamos nos esforçar muito mais para alcançar os outros tanto no cenário competitivo quanto na produção de conteúdo. Nossa voz parecia menos importante, as paredes ao nosso redor pareciam mais altas - o Magic, que dá passos cada vez mais largos em se tornar um jogo inclusivo, parecia não nos incluir.

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O anúncio desta semana foi apenas a confirmação do que já estava lá, e ela gera uma frustração profunda na comunidade brasileira. Sem esse idioma, o jogo, gradualmente mais complexo a cada novo lançamento, se torna inacessível para uma parcela muito grande do nosso povo: segundo a British Council, apenas 5% dos brasileiros sabem inglês e apenas 1% é fluente no idioma.

Como um jogador e produtor de conteúdo com bom conhecimento de inglês, essa mudança não me frustra por impossibilitar seu acesso a mim, mas ela deixa uma mensagem muito clara de abandono e de não valermos o tempo e investimento para a Wizards/Hasbro, e os sinais sobre o futuro são ainda piores: a partir de agora, a comunidade brasileira de Magic só tem a perder.

Com esse pesar fora do meu caminho, preciso assumir meu papel de comunicador e avaliar a situação de um ponto de vista abstrato, coletivo e lógico de um momento difícil para o Magic no Brasil. Este é um momento-chave de reavaliarmos a nossa relação com o jogo e/ou com TCGs, e fazer essa análise individual não deve ser construída em torno de ódio, mas sim dos valores que consideramos importantes perante nossa comunidade e o posicionamento da Wizards of the Coast em relação a ela.

Novamente, Magic é um produto a ser vendido

Quantas vezes precisei usar essa frase em um artigo?

Sempre que abordamos decisões comerciais questionáveis e outros problemas em torno de Magic: The Gathering, é impossível olharmos logicamente para as decisões que a Hasbro/Wizards tomam quando nos negamos a compreender o conceito primário de qualquer jogo e a motivação das empresas em criá-los: eles são produtos a serem vendidos.

Por se tratar de um hobby onde o cerne é a diversão e aproveitamento, jogadores de Magic tem a tendência de romantizar e criar belas histórias em torno dele, e ficam profundamente frustrados sempre que são lembrados da sua natureza comercial.

Faz alguns anos que essa natureza está girando em torno de uma estratégia de mercado predatória com sobrecarga recorrente de lançamentos mês após mês. As engrenagens do consumo estão girando mais rápido do que nunca, a fadiga de produtos é um debate real, e não existe qualquer sinal de que a empresa vai mudar seu comportamento mercadológico nos próximos anos.

Enquanto a comunidade pode olhar para o jogo com paixão, uma empresa - ou pelo menos a parte que dá as ordens nela - sempre o olhará com números em mente: lucros, despesas, aplicações, investimentos. Como o próprio anúncio da Wizards deixa claro, a razão para perdermos a localização em português (e, surpreendentemente, chinês) é de que a receita gerada por esses segmentos não correspondem aos custos necessários de produção.

É contraditório para um jogo que busca se tornar mais inclusivo, mas não há “emoção” ou “consideração” nessa escolha, há números. E os países que consomem esse produto em português demonstraram resultados abaixo das expectativas da empresa - E há de convir, Magic é um sub-nicho de entretenimento no Brasil.

Podemos alegar os vários problemas logísticos com distribuidoras que já existiam quando comecei a jogar e persistem até hoje? Sim. Podemos alegar a falta de suporte da empresa para atrair novos jogadores? Também! Mas a realidade é a da nossa moeda ser bem mais desvalorizada em comparação com a de países cujos idiomas permanecem em produção: Italia e Alemanha geram receita em Euro e Portugal tem realmente preferido cards em inglês devido a erros de tradução e/ou traduções literais demais para eles.

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Magic (e Dungeons & Dragons) deixará de ser produzido em português, a comunidade brasileira é a mais prejudicada com isso, pois não temos a mesma facilidade de aprendizagem do idioma inglês que outros países do Norte tem, e o Real brasileiro é uma moeda desvalorizada, o preço do Booster ou de um deck de Commander demanda muito mais horas de trabalho aqui do que em países da Europa.

Isso poderia ser adereçado com a produção do jogo feita na nossa indústria nacional, como Pokémon TCG faz com a Panini tem anos e tornou do produto mais acessível para nós? Sim. Mas não é este o modelo de mercado que a Wizards propôs, eles decidiram que podem retirar a localização para o nosso idioma porque isso não vai prejudicar a venda dos produtos deles para a nossa região (há muitas ressalvas para D&D, mas esse é um artigo sobre Magic).

E quem mais perde com essa mudança? Os iniciantes, é claro!

A Barreira de Entrada cresceu, e essa é só a ponta dos problemas futuros

O principal debate em torno dessa decisão é como, sem acesso a produtos em português, Magic se torna muito mais difícil de introduzir novos jogadores, e sem eles e a saída de uma parcela devido aos preços crescentes dos produtos na nossa região e/ou a decisão de alguns em não dar suporte para a empresa devido às suas mudanças, o jogo pode voltar a estagnar no país e ter dificuldades severas em inserir “sangue novo” apesar das tentativas de atrair públicos de outras franquias com a série Universes Beyond!

Idioma é uma barreira de entrada gigantesca em um país onde 95% do seu povo não sabe ler e/ou falar em inglês, e Magic está se tornando notoriamente mais complexo, com cards recheados de textos cada vez maiores, além de mecânicas complicadas e pouco intuitivas lançadas a cada expansão, e o padrão de produto de introdução do jogo presencial hoje são os decks preconstruídos de Commander - um maço de 100 cartas com, no mínimo, 60 delas tendo ilustrações, textos e funções distintas!

Como podemos trazer um público novo ao jogo quando as portas de entrada para o Magic de mesa passam a serem tão restritivas? Recomendando o Magic Arena e fazendo com que eles percam a experiência de jogar com seus amigos em uma loja local, prejudicando ainda mais a economia que gira em torno do jogo? Ou tomar a absurda atitude elitista de dizer que eles deveriam fazer um cursinho de inglês para poder jogar conosco?!

Nenhuma dessas opções é lógica ou razoável para apresentar Magic como um jogo convidativo para iniciantes; é como dizer “este jogo é para todo mundo, desde que você saiba inglês!”. Nós não podemos fazer isso em uma era em que inclusão e diversidade são essenciais para a promoção de marcas e produtos no mundo afora, e para um jogo que traduzia seus produtos em português desde 1995, é um retrocesso gigantesco em prol de um pouco mais de lucro.

A dificuldade em trazer novas pessoas para o Magic pode, eventualmente, levar a uma série de outros problemas para o jogo no Brasil.

Ainda temos muito a perder, e podemos perder

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A lógica é bem simples: se menos pessoas tem acesso ao produto, menos receita vamos gerar. Quanto menos receita gerarmos, menos incentivo a Wizards/Hasbro tem para disponibilizar os produtos e eventos para o Brasil. Com menos produtos, menos pessoas tem acesso a eles, e o ciclo se repete.

Como toda relação de mercado, a solução implícita é de consumir mais produtos para ter reconhecimento de que vale a pena investir na nossa região. Já é difícil fazer isso com os segmentos atuais em português porque Magic é um hobby caro e alguns produtos tem ficado ainda mais caros (os preços dos decks precon de Commander Masterslink outside website bateram mais da metade de um salário mínimo), então conforme você reduz o escopo de compradores, menor é a tendência de rotatividade de produtos nesse mercado.

Sem rotatividade, lojas pedem menos dos novos lançamentos nas distribuidoras porque, afinal, a conta chega em algum momento. Com menos pedidos, menor é o interesse das distribuidoras de trazerem os produtos, e menor é a receptividade da Wizards de que vale a pena investir em distribuir seus produtos no Brasil.

Não surpreenderia se perdermos a localização em português do Magic Arena em alguns anos, ou se deixassem de enviar produtos da categoria “premium” (Horizons, Masters, Universes Beyond, entre outros) por não compensarem os custos logísticos já que a venda deles é muito baixa - No pior e improvável cenário, poderíamos perder o acesso total ao produto através de distribuidoras e voltarmos ao período sombrio em que ficávamos a mercê de métodos questionáveis de importação.

Outras possibilidades, como perdermos nosso suporte ao jogo competitivo e perdermos espaço nos RCs e, consequentemente, no Pro Tour e Campeonato Mundial, não preocupam a maioria dos jogadores, mas serviria como um enorme desmotivador para quem se dedica ao Magic competitivo.

Magic não vai acabar no Brasil

A Wizards, hoje, conta com o potencial de Magic de se vender por conta própria para um público extremamente fidelizado, e sabem que vários produtos continuarão vendendo no Brasil em inglês porque uma maioria dos jogadores de longa data consegue interpretar e ler o idioma, ou pelo menos entender o “inglês do jogo”, além de contar no potencial colaborativo que um “jogo social” possui, onde pessoas explicam cartas e habilidades para outras a fim de tornar da experiência agradável para todos.

Este é um ponto verídico e fatual: Magic se vende sozinho para seu público fidelizado independente do idioma desde sempre. Houve um período entre 2016 e 2018 onde brasileiros estavam comprando muitos cards de Kaladesh e Aether Revolt em russo porque “era o que tinha”, houve períodos em que dealers e lojistas viajavam até outro país para buscar seus materiais porque o nosso atrasava por semanas ou até meses - Nada disso nos impediu de continuar consumindo o jogo e participando de eventos.

Esses são maioria na movimentação de singles e até de produtos selados, e eles continuarão no jogo apesar da empresa responsável por ele não dar mais suporte ao seu idioma nativo, e quase nenhum outro problema será capaz de atingi-los, exceto se a empresa tirar todo o suporte regional de eventos casuais e competitivos do Brasil, um dos principais impulsionadores Magic em nosso país desde 1996.

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Hoje, Commander, conhecido pelo seu teor casual e descontraído, é o formato mais jogado do mundo e ele permanecerá onde está - Parece muito difícil que os preciosos vínculos criados através do gathering sejam quebrados tão facilmente por uma barreira de idiomas - mas são os grandes eventos e o sonho de participar deles que movem uma parcela significativa da economia do jogo no Brasil. Seja no sonho de ganhar um Regional Championship e participar de um Pro Tour, ou até a grande celebração do Gathering em um Command Fest.

Jogadores gostam de cultivar e compartilhar esses sonhos e aspirações, e o Brasil é um povo naturalmente festivo. Nós cultivamos comunidades, boas ou ruins, com muita facilidade e costumamos gostar da interação com outras pessoas e compartilhar nossas paixões em torno de um assunto em comum. Retirar o suporte local e nacional de eventos seria o mais próximo que este jogo chegaria do fim no Brasil, pois travaria permanentemente os motivos para jogá-lo - Para fins práticos, o Magic presencial poderia ser dado como morto.

O nosso Gathering, por outro lado, é maior que isso. Talvez, uma boa parcela só decidisse não jogar mais Magic e aproveitar outros hobbies com seus amigos.

É hora de reavaliarmos nossa relação com Magic

Como mencionei no início do artigo, não há momento melhor do que este para reavaliarmos a nossa relação com Magic: The Gathering.

A Wizards/Hasbro olhou para nós e decidiu que não valemos o investimento de inclusão e localização deles após quase 29 anos de suporte. Para fins práticos, eles excluíram muitos futuros jogadores da nossa região, impossibilitando-os de conhecer o jogo. Talvez, eles tenham selado o destino de um futuro campeão mundial que nunca terá o seu momento de glória.

Logo, é o momento de olharmos para Magic e a Wizards/Hasbro e considerarmos se eles valem o nosso tempo e dinheiro. Essa é uma análise individual e, de preferência, feita mediante lógica para compreender o quanto as recentes decisões da empresa afetam a você e aos seus valores.

Se você quiser continuar jogando in english, vá em frente. Acredito que muitos outros farão o mesmo e você continuará participando de eventos, se divertindo em mesas de Commander, ou até ganhando torneios, independente do idioma em que seus cards estão.

Por outro lado, se você considera essa postura da empresa inaceitável e não quer mais jogar Magic, busque outro hobby e/ou TCG que dê mais suporte para o Brasil e se entretenha com ele. Pokémon, por exemplo, tem tiragem em português com produção nacional, sendo muito mais acessível e com um ótimo suporte competitivo.

Não existe “certo ou errado” em como abordar nosso relacionamento com a Wizards e Magic a partir de agora. É uma questão de valores e de considerar o quanto ainda é benéfico para cada um continuar jogando e acompanhando as novidades em torno dessa marca.

No fim, quando a poeira abaixar, só espero não terminarmos cultivando ódio uns contra os outros pela forma como decidimos manter ou encerrar esse ciclo de longo prazo.

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Conclusão

Na última vez em que escrevi sobre esse assunto, minha conclusão foi otimista: “Magic sobreviveu quase duas décadas sem gerenciamento de comunidade, e enquanto apoiarmos as lojas locais, podemos continuar cultivando comunidades saudáveis”.

Bom, o Brasil nunca passou por ausência de localização de Magic em quase três décadas. Não há precedentes para o que acontece a partir de agora e a comunidade certamente toma uma pancada em seu potencial de crescimento e inserção de novos jogadores.

Parece exagerado afirmar que é o fim de Magic no Brasil. Não é, não por falta de público. Pelo menos, essa não soa como a maior das preocupações para o futuro do jogo no momento.

Me preocupam a falta de suporte no longo prazo e seu potencial de levar o jogo a patamares ainda mais inacessíveis, a falta de suporte às lojas locais em um momento difícil quando elas se tornaram a nossa única voz perante a falta de uma comunicação integrada, e a incerteza de se nosso país continuará tendo representatividade nos grandes eventos competitivos através dos RCs.

Me preocupam os erros da Hasbro em transformar a Wizards em uma mina de ouro e tentar extrair o máximo de seus produtos ao ponto de causar fadiga em seus consumidores, e como isso afeta a nossa comunidade tanto em localização quanto em aspectos financeiros, motivando menos jogadores a consumirem o jogo, consequentemente nos fazendo perder mais espaço e ter menos disponibilidade de produtos.

Me preocupam os sinais de como a nossa região sempre requer muito mais esforço para conquistar coisas simples dentro e fora deste jogo e como essa situação se reflete no sentimento de sermos insignificantes ao mundo se comparados com o norte global.

Me preocupa como, muitos séculos depois, ainda não nos livramos das amarras e das regras pré-estabelecidas nas relações geopolíticas entre os colonizados e os colonizadores.

Por fim, me preocupa que Magic, um jogo visando se tornar tão inclusivo, tenha decidido não nos incluir.

Obrigado pela leitura.